quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Merda da boca para fora

Quando a noite cai e eu estou sozinho no frio
Penso que posso nunca te ter amado.
Se calhar estou a amar-te agora,
E tu nunca me amaste,
nem me vais amar.

Podia entrar agora por filosofias hollywoodescas,
a dizer que o amor dói e amar é sofrer...

Mas espera lá, isso é a minha vida.
Será que isto é um filme e não é real?
Será que estou a chegar ao plot twist?
Será que os créditos finais vão rolar sobre um beijo nosso ao pôr do sol? merda, lá estou eu outra vez nos clichés, desculpem mas perdi o jeito.

O romantismo já me é artificial,
Um final feliz já é um túnel escuro e sem fim
porque a luz está ao fundo do túnel.
Já não há heróis, nem dragões,
nem agilidade de pensamento, nem vigor juvenil
nem alegria de viver, joie de vivre,
nem Shakespeare nem Racine nem Calderón nem Gil Vicente nem Saramago nem Miles Davis nem Bob Dylan nem Radiohead nem James Joyce nem Aphex Twin nem Clint Eastwood nem paciência nem nada.

Um tiro na cabeça.
Para isso tenho paciência,
mas não tenho arma.
Nem bolas..balas para a carregar.

Posto isto,
que é só um argumento chunga para um filme independente,
Divirto-me a organizar palavras em coisas aleatórias,
que ao menos essas vou dominando.
Quanto aos acontecimentos,
consomem-me como o fogo à lenha e eu deixo-me queimar.
Ficando apenas as cinzas depositadas na urna onde existimos e morremos.
Jazendo na eternidade.

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Os cortes no estado.



Há coisas que me tocam. Não como um instrumento, mas espetam-me como facas. Quando o calor da noite não é o nome vulgar de uma casa de putas, as coisas saem-me como um jorro, como quando se tira a faca da carótida. Jorram para o vazio, transformando-se em mais escuro para rodear as estrelas brilhantes que não sou. Às vezes farto-me de lirismos de merda, mas que posso fazer? Eu sou assim. Peso mais de oitenta quilos, fumo um maço de cigarros por dia, digo palavrões, e quando me perguntaram se podia haver poesia depois de Auschwitz a minha resposta foi “foda-se, queres coisa mais poética que o Holocausto?”. As cicatrizes só são cicatrizes durante um tempo. Depois tornam-se o teu corpo, o umbigo sobre o qual tu pensas que tudo gira não é mais que uma cicatriz, para mim a mais dolorosa. Tiraram-te desde nascença a ligação à tua origem, e o umbigo é a marca disso. O que há de mais doloroso do que desligares-te de onde vens? E tu ris-te a fazer caras parvas com marcadores na barriga, ou a tirar o cotão enquanto estás com uma expressão que torna óbvio a parte da cara com que comes gelados. Mas não perdemos tempo a pensar nisso. Quem pensa nisso ou é doente, ou fumou erva demais. Preferimos pensar na tortura que é as pessoas acharem que estamos mal vestidos, ou aquela cara laroca não reparar em nós. Ou no trabalho que é uma merda única e exclusivamente por nossa causa. Porque não temos o belo par de colhões que é preciso para nos pormos a andar dali para fora, tal Tyler Durden montado numa Harley Davidson a disparar tiros com uma Winchester de repetição. Preferimos fazer-nos de coitadinhos e chorar baba e ranho pelo dói-dói que fizemos com uma faca de barrar manteiga. Já não me consigo assustar quando me ameaçam com uma faca, é pouco. Parece-me parvo achar que o mundo vai ruir por causa de um pedaço de metal afiado. Tens um baço furado, e depois? Vais para o hospital, passas uns dias de folga, com toda a gente a dar-te atenção. Isso não é bom? Não é isso que queremos? Quando me ameaçam com facas peço a Deus (ou o que caralho haja por aí) que ma espetem com quanta força consigam. E quando a ameaça está no limiar da acção, sorrio a pensar em tudo o que vai jorrar de dentro de mim sem controlo, tudo aquilo é verdadeiro. O golpe com que me ameaças é a libertação que anseio. Afinal de contas, o que é o corte de uma faca comparado com o teu umbigo?