terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Os cortes no estado.



Há coisas que me tocam. Não como um instrumento, mas espetam-me como facas. Quando o calor da noite não é o nome vulgar de uma casa de putas, as coisas saem-me como um jorro, como quando se tira a faca da carótida. Jorram para o vazio, transformando-se em mais escuro para rodear as estrelas brilhantes que não sou. Às vezes farto-me de lirismos de merda, mas que posso fazer? Eu sou assim. Peso mais de oitenta quilos, fumo um maço de cigarros por dia, digo palavrões, e quando me perguntaram se podia haver poesia depois de Auschwitz a minha resposta foi “foda-se, queres coisa mais poética que o Holocausto?”. As cicatrizes só são cicatrizes durante um tempo. Depois tornam-se o teu corpo, o umbigo sobre o qual tu pensas que tudo gira não é mais que uma cicatriz, para mim a mais dolorosa. Tiraram-te desde nascença a ligação à tua origem, e o umbigo é a marca disso. O que há de mais doloroso do que desligares-te de onde vens? E tu ris-te a fazer caras parvas com marcadores na barriga, ou a tirar o cotão enquanto estás com uma expressão que torna óbvio a parte da cara com que comes gelados. Mas não perdemos tempo a pensar nisso. Quem pensa nisso ou é doente, ou fumou erva demais. Preferimos pensar na tortura que é as pessoas acharem que estamos mal vestidos, ou aquela cara laroca não reparar em nós. Ou no trabalho que é uma merda única e exclusivamente por nossa causa. Porque não temos o belo par de colhões que é preciso para nos pormos a andar dali para fora, tal Tyler Durden montado numa Harley Davidson a disparar tiros com uma Winchester de repetição. Preferimos fazer-nos de coitadinhos e chorar baba e ranho pelo dói-dói que fizemos com uma faca de barrar manteiga. Já não me consigo assustar quando me ameaçam com uma faca, é pouco. Parece-me parvo achar que o mundo vai ruir por causa de um pedaço de metal afiado. Tens um baço furado, e depois? Vais para o hospital, passas uns dias de folga, com toda a gente a dar-te atenção. Isso não é bom? Não é isso que queremos? Quando me ameaçam com facas peço a Deus (ou o que caralho haja por aí) que ma espetem com quanta força consigam. E quando a ameaça está no limiar da acção, sorrio a pensar em tudo o que vai jorrar de dentro de mim sem controlo, tudo aquilo é verdadeiro. O golpe com que me ameaças é a libertação que anseio. Afinal de contas, o que é o corte de uma faca comparado com o teu umbigo?

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